TRILHAS NO CARAÇA
Depois de 3 anos sem tirar férias para viajar, minha esposa sugeriu darmos um pulo em Belo Horizonte para conhecermos o Parque Nacional da Serra do Gandarela e o Santuário do Caraça. Passagens compradas e carro alugado, fomos em nossa aventura na última semana de novembro de 2025. Passamos 3 dias numa pousada na cidade de Rio Acima, ao lado do Parque, cercado por empresas de mineração. Sem muitas aventuras em termos de trilhas para caminhada, fomos de carro visitar algumas cachoeiras e tivemos a grata surpresa de encontrar boas condições nas estradas de terra, pois são mantidas pelas empresas de mineração. Sem lamaçais e buracos, estradas largas e sempre molhadas, um caminhão pipa sempre está umedecendo as vias a fim de evitar nuvens de terra para a população local.
A caminho do mirante do Gandarela, percebi marcas recentes de retroescavadeira e a poucos metros do mirante encontramos uma equipe de terraplanagem realizando uma manutenção pontual numa subida íngreme. Glauco, o encarregado da operação foi um verdadeiro enviado divino, pois mora na região há décadas e conhece todo o parque. Nosso principal receio era sobre as condições das estradas ao cruzar o parque nacional para chegar ao santuário. Ele nos orientou que atolar seria improvável, pois o solo da região não é propenso a atoleiros, mas apenas derrapagens em casos de chuva forte. Nos informou que fora da região que delimita o parque nacional as estradas estão bem manutenidas e que deveríamos apenas a ter cautela ao atravessar a região do parque, uma vez que a estrada é estreita e sinuosa, com grande chance de encontrarmos algum local transitando de moto ou a cavalo. Do mirante tivemos nossa recompensa: uma bela vista.


Ainda era cedo para o fim do expediente, mas o borracheiro da cidade não quis resolver nosso problema pois talvez pudesse demorar de 4 a 5 horas o reparo. Depois de pensar em alternativas, resolvemos dar um salto de fé e decidimos atravessar o parque com o estepe e sem pneu reserva. O caminho até a divisa do parque já era conhecido e em boas condições, mas logo a placa de “Bem Vindo Ao Parque” já nos dava uma pista da próxima hora: mata fechada, muita curva e estrada estreita, espaço apenas para um carro em quase todo o trajeto.
Por sorte, não encontramos nenhum carro, moto ou cavalo no trecho dentro das delimitações do parque, além de não termos tido outro pneu furado ou chuva forte. O clima ensolarado nos acompanhou. Ao chegar nos distritos de Conceição do Rio Acima e São Gonçalo do Rio Acima já nos deparamos com ruas de blocos de concreto sextavado. Alívio. Ao invés de irmos direto ao santuário, nos dirigimos a cidade de Santa Bárbara onde um borracheiro realizou o reparo no pneu furado em menos de 1h. Após o almoço, finalmente fomos ao Santuário.
O Santuário
A estrada do Caraça se inicia com uma portaria onde apenas hóspedes e aqueles que pagam o day-use podem entrar (R$35 em dias de semana e R$45 nos fins de semana). Após 12 Km de estrada chegamos ao santuário. Resumo da história do lugar: Em meados do século XVIII, irmão Lourenço era de uma família que fracassou num atentado à família real. O rei, Dom José I, ordenou a morte de todos os homens da família, total de 12, para servir de exemplo e acabar com a linhagem dos rebeldes. Ao se contar quantos homens haviam sido executados, apenas 11 corpos foram contabilizados. Nessa altura, Lourenço já havia fugido de Portugal e veio ao Brasil. Pouco tempo depois, descobriu a região do caraça e resolveu criar um santuário dedicado à Nossa Senhora Mãe Dos Homens e erigiu uma igreja. Sem filhos, ao morrer deixou em testamento o santuário à coroa portuguesa como forma de pedido de desculpas.
Com o tempo, o santuário passou a ser: escola, seminário, casa de passagem e após um incêndio em 1968, o local fora fechado por algum tempo. Por fim, no início dos anos 1970 após a implantação de estrada de asfalto e reformas bancadas inicialmente por ex-alunos, o santuário passou a ser uma atração turística e com o tempo começou a receber hóspedes. Hoje o local é mantido pela Província Brasileira da Congregação da Missão, vinculada à Igreja Católica. A versão mais completa da história pode ser vista no site do santuário ou num tour guiado dentro do museu do santuário.
Santuário visto de cima

Igreja e as alas dos dormitórios
Hora do lobo
A grande atração do parque são as ocasionais visitas de lobos-guarás. A história remonta à 1982 onde o padre Tobias Zico queria descobrir o responsável por revirar as latas de lixo do santuário durante a noite e após algum tempo percebeu que se tratava de um lobo-guará em busca de comida. Para evitar o lixo revirado, decidiu oferecer pedaços de carne e frutas ao animal e essa tradição se mantém até hoje, todos os dias às 19h. Não é sempre que a visita ocorre, às vezes apenas no meio da madrugada, o que pode frustrar aqueles que se hospedam apenas para ver o lobo. Mas tivemos a sorte de contemplar esse momento.
Lobo-guará fêmea passeando pelo jardim antes do jantar
Trilhas
Algumas razões nos levaram ao santuário: desconexão momentânea do mundo digital, contemplação da natureza, o lobo e trilhas. A região do Caraça é um prato cheio para quem gosta de trilhas, desde curtas como a Cascatinha (50min ida e volta) além de trilhas longas rumo aos picos da serra, com mais de 20 Km. Estas só podem ser feitas com permissão e agendamento com os guias do parque. Como não tínhamos preparo para aguentar uma trilha pesada em mata fechada aos picos, decidimos ir no meio termo e fazer uma trilha por dia que nos ocupasse o período da manhã. As maiores trilhas passíveis de serem feitas sem a presença dos guias são as trilhas da cachoeira da Bocaina e Cascatona, ambas girando em torno de 3h30 a 4h ida e volta, considerando o tempo nas cachoeiras em si.
E assim decidimos: Bocaina no primeiro dia e Cascatona no segundo, ambas no período da manhã, por causa da temperatura. Gostaria de deixar bem claro que somos trilheiros amadores, sem profundos conhecimentos em artes mateiras. Caminhar é nosso hobby.
Trilha da Bocaina
Por não ter chovido forte dias antes, os guias autorizaram nossa aventura. A trilha da Bocaina foi digna de jogos de RPG, onde a cada quilômetro o cenário mudava. Até a cachoeira passamos por: paisagem típica de cerrado, com árvores de pequeno e médio porte em campo aberto; áreas de brejo; um campo cheio de xaxim, em que mais se parecia um cenário alienígena; pequena escalada em formações rochosas e um pequeno trecho de mata fechada. Nesse dia o sol forte nos castigou desde cedo o que nos cobrou muita água e isotônico para não desidratar. Ao fim de 5.5 km chegamos em nosso destino.

A água da cachoeira, rica em minério de ferro, é potável desde que seja apropriadamente filtrada. Decidimos não entrar devido a profunda fenda nas pedras, além de uma grande nuvem escura que estava se aproximando, o que poderia indicar uma possível cabeça d’água. Após alguns minutos contemplando a paisagem e repondo o suor perdido, voltamos. Devido ao terreno acidentado e com alta altimetria, dificilmente iríamos fazer algo em torno de 5 km/h, velocidade média de caminhada geralmente em lugares planos. Total de 3h30 e velocidade média de aproximadamente 3.3 Km/h.
Suados, sujos e famintos, chegamos no santuário pouco antes de 12h30 e partimos direto para o almoço. A estadia conta com pensão completa (café da manhã, almoço e jantar) e lá repomos parte das mais de 1600 kcal gastas durante a manhã (de acordo com o smartwatch). Acredito que nesse dia ficamos em déficit calórico.
Trilha da Cascatona
A região por ser uma área de transição entre mata atlântica e cerrado, é comum transitar entre os dois biomas em questão de alguns minutos de caminhada. Diferente do cerrado em direção à Bocaina, a Cascatona se caracteriza por uma região de mata atlântica, uma trilha de mata fechada, com pouca luz direta e ar parado. A ida é majoritariamente descida, onde o solo argiloso e cheio de folhas caídas é um convite a acidentes, portanto todo cuidado é pouco. Passamos por dois pontos com forte cheiro de urina de animais silvestres e nos perguntamos se poderia ser um lobo-guará. Apenas no último quilômetro da trilha saímos da mata fechada para caminhar sobre uma formação rochosa. Antes de chegar em nosso destino, uma escadaria com quase 300 degraus (sim, acabei contando e deu 273).
Escadaria à cachoeira
A Cascatona
Dessa vez aproveitamos o momento e entramos na água, não tão fria quanto imaginamos, provavelmente aquecida na grande rocha durante a queda. Após o descanso e uma breve refeição, voltamos ao santuário. A volta, perto das 11h, nos mostrou que o ar parado dentro da mata que estava fresquinho de manhã havia se tornado um leve bafo. Após 1h30 e duas paradas para hidratação, chegamos ao santuário. Ida e volta totalizaram 9.25 Km em 3h (já descontados os 30 min que ficamos na cachoeira) e 1700 kcal gastas.
Vestimenta
Nada melhor do se vestir como os guias, pois se eles são os especialistas quem sou eu, um amador, para ir diferente? Já tínhamos uma noção básica de como se vestir para esse tipo de trilha e não iríamos cometer erros grotescos como já presenciamos não apenas nessas, mas também em trilhas passadas, como: ir de chinelo, sandália, regata, sem protetor solar e chapéu e com pouca água. A foto abaixo mostra o que usei em ambas as trilhas

Camisa dry-fit de manga longa: nada de algodão, dry-fit é perfeita para esse tipo de cenário, suor evapora rápido, super confortável e com proteção UV
Calças de trilha: essas calças têm a vantagem de se converterem numa bermuda ao retirar a parte da canela, por um zíper. Ao final da trilha da Bocaina retiramos a parte de baixo para caminharmos descalços numa prainha próxima. Muito prático.
Colete: muito útil para armazenar equipamentos, como lanternas, lâminas e mapas sem precisar ficar tirando a mochila a todo momento.
Chapéu legionário: para evitar queimaduras de sol no pescoço
Toalha de secagem rápida: alguns minutos no sol após o uso, já está seca o suficiente para voltar à mochila
Smartwatch: para registrar a atividade, principalmente o trajeto. Nesse caso, um Samsung Galaxy Watch 4.
Botas de trilha: após 8 anos cumprindo seu propósito, decidi que vou aposentar minhas botas da Quechua e agora serão apenas usadas nos trabalhos externos de casa. Gosto do seu solado, aderência e conforto.
Equipamentos

Para trilhas curtas não sentimos necessidade de levar nada além do que está na foto. No máximo poderíamos ter levado rádios comunicadores e sintonizar na mesma frequência utilizada pelos guias, apenas como uma camada extra de segurança caso precisássemos de socorro, uma vez que sinal de celular é inexistente. Não está na foto, mas cada um de nós carregou uma mochila de 35L, contendo parte dos equipamentos, comida, água e uma muda de roupa.
- Garrafas d’água e filtros: não foi a primeira vez que levo a Stone Water numa trilha, mas a primeira em que fiz uso recorrente. Não apenas nas trilhas, mas a água do santuário é de captação de mina, naturalmente ferrosa, com algum odor, cor amarelada e gosto metálico. Para evitar qualquer dor de barriga, assim que acabou a água que havíamos trazido conosco, usei a Stone Water para filtrar a água dos bebedouros. Além disso, após o breve descanso nas cachoeiras, fazia questão de encher a garrafa com a água da cachoeira, sempre captando a água corrente. Impressionante que a água filtrada não tem qualquer gosto, cor ou cheiro.
- Lâmina: apenas caso fosse necessário, mas não foi utilizada.
- Power Bank: acredito que foi um pouco de exagero, pois as trilhas eram apenas de meio período, portanto é pouco provável que a bateria do celular acabasse, mas devido ao pouco peso, decidimos levar. Não foi utilizado.
- Lanterna: essa Wuben G5 realmente faz milagre, muito potente dada suas dimensões e capaz de se acoplar em bonés e camisas. Usamos apenas para checar plantas de forma pontual e não para nos guiar na trilha.
Alimentos
Uma vez que as trilhas foram de apenas de meio período, não sentimos necessidade de levar refeições pesadas (comidas liofilizadas ou pré cozidas) nem de equipamentos para preparo (fogareiro e panelas), portanto os alimentos carregados foram aqueles de consumo rápido.
- Frutas: maçã e pera, consumidos durante as pausas nas cachoeiras. Oferece maior sensação de saciedade do que as outras opções, provavelmente por conter maior quantidade de fibras
- Paçoca: baita fonte de energia, consumidas durante as pausas nas cachoeiras.
- Isotônico em pó: melhor opção do que ficar carregando garrafas de isotônico pronto. Cada sachê custou R$2, menos da metade de uma garrafa de bebida pronta e rende 500ml. Se fez útil em ambas as trilhas, em cada uma ingerimos um total de 4L de líquidos (2L para cada um de nós) sendo 2.5L de água e 1.5L de isotônico (3 sachês). Consumidos ao longo da trilha, tanto na ida quanto na volta.
- Couro de frutas: apesar de já conhecer o conceito, nunca tinha consumido esse tipo de produto. Descobri recentemente essa marca e resolvi testar. De acordo com os ingredientes é só mesmo que está na embalagem (maçã e morangos; maçã e blueberries), sem qualquer conservante. O gosto é bom, entre os dois sabores gostei mais o de morango, lembra bem uma geleia. Cada barra de 30g possui por volta de 100 kcal. Não sou nutricionista, então não sei dizer a questão de índice glicêmico ser maior ou menor que a paçoca, portanto para trilhas mais longas onde a matemática calórica é mais crítica, talvez não seja uma boa opção. Acredito ser um bom snack para quem está de dieta. Cada pacotinho custou R$5. Consumidos nas paradas das cachoeiras.
- Gel de carboidrato: um pouco de exagero e redundância, mas estava na minha prateleira para quando vou pedalar e resolvi levar. Boa fonte de carboidrato e sais minerais. Consumidos ao longo da trilha, tanto na ida quanto na volta.
- Clorin: redundância na purificação da água capturada nas cachoeiras
Aprendizados
- Não economizar na alimentação: seja antes, durante e depois da atividade. Melhor errar para mais do que para menos. Nada pior do que uma cãibra e fome para estragar um momento de relaxamento. É nessa hora que percebemos que o corpo pede, pois não temos hábito de jantar, mas depois de um alto gasto calórico de manhã e à tarde (com outras trilhas menores) sentimos bastante fome à noite, mesmo após um almoço bem feito.
- Água: sempre levar para sobrar ou dar o último gole na chegada. Nunca esperar para beber apenas quando estiver com sede, pois já pode ser um sinal de desidratação, mas sempre dando um gole ou outro durante o caminho. Como já mencionado, a garrafa com filtro se fez de grande valia, nos dando um fôlego extra em nossa capacidade de consumo, sem precisar carregar peso extra.
- Redundância: acredito ter exagerado um pouco em levar várias opções de alimentação, mas achei válido para testar aquilo que melhor se adequa às nossas necessidades e às futuras trilhas. Muito provável que eu não leve mais os couros de frutas, devido ao custo. Em compensação, frutas in natura se mostraram bom equilíbrio entre saciedade e calorias.
- Mental: interessante que na ida fomos conversando, prestando atenção na paisagem e plantas, tirando fotos e curtindo a descoberta de um lugar novo. Mas na volta estávamos calados e concentrados. Quando o corpo cansa a mente entra em cena. Para evitar focar em demasia no incômodo nos pés e joelhos, decidi revisar mentalmente o último livro que estou lendo durante a caminhada (Treason of Sparta – Christian Cameron). Quando me dei conta, já estava no último quilômetro. Essa estratégia me ajudou a passar o tempo, já que na volta o cenário já era conhecido.
Texto escrito pelo leitor: Rodrigo.
