A gruta – Contos sobrevivencialistas

“Há algumas coisas que não se pode aprender rapidamente, e o tempo, que é só o de que dispomos, cobra um preço alto pela aquisição delas. São as coisas mais simples do mundo, e porque leva a vida inteira de um homem para conhecê-las, a pequena novidade que cada homem extrai da vida custa muito caro e é a única herança que ele poderá deixar.”

Ernest Hemingway.

A PREPARAÇÃO

Essa jornada será minha última. Dela, não pretendo voltar para a civilização.

Durante anos me questionei sobre os motivos que nos levaram a viver como vivemos hoje. Dos infinitos porquês de trabalharmos tanto para sustentar uma vida que não é necessária. A verdade é que mundo se tornou um lugar duro. Que não se importa com ninguém.

Não que ele odeie você, mas não morre de amores por nenhum de nós. Coisas terríveis acontecem no mundo, e por mais que tentemos, não conseguimos explicar. Pessoas boas morrem tragicamente e pessoas ruins vivem por anos a fio. Mas se o mundo nos amasse como nossas mães, ele seria muito pior.

Se me perguntarem, depois de tudo, por quê deixei a civilização e fiz o que fiz, direi que tentei viver aquilo que brotava dentro de mim, e que escondi por todos esses anos.

O que contarei neste relato não deve ser julgado com olhares civilizatórios, mas sim com olhares egoístas. Só um egoísta pode me entender. E entender, que por mais que nos choquemos com a dureza de nossos atos, nossas atitudes nunca mudarão, é um pensamento egoísta.

Era tarde da noite quando comecei a planejar uma saída. Foi como um estalo. Comecei a separar meus utensílios enquanto pensava em deixar meu emprego, parentes, amigos e todos aqueles laços incompreensíveis.

Além dos meus equipamentos eventuais de cada jornada, como um par de facas, um canivete multiuso, barraca e etc. Preparei equipamentos que me possibilitariam caçar, me camuflar e me hidratar permanentemente.

Bem, arrumada minha mochila, segui para uma serra sentido litoral paranaense.

Fui de ônibus até Garuva, na divisa do estado, cheguei lá cerca de 6 da manhã, e de lá, continuei a pé, subindo um morro que havia atrás da BR-101. Caminhei por cerca de 8 horas até encontrar um bom lugar para montar um abrigo.

PRIMEIRO DIA

O lugar que eu encontrei era uma clareira, que ficava a 15 minutos de uma nascente de um riacho. Era plana, mas em uma parte alta do morro. Isso me garantiria suporte de água e me protegeria de possíveis inundações, recorrentes naquela região. Além de que, se você fica razoavelmente perto de alguma fonte de água, não precisa andar muito para caçar, já que a caça (e seus predadores naturais) vão instintivamente para aquela região.

Improvisei uma pá, e comecei a fazer um buraco. Demorei o resto da tarde para fazer um buraco que chegava na altura da minha cintura, e devia ter uns 3×3 metros de largura. Montei meu acampamento, Comi uma das refeições que levei, e fui dormir.

SEGUNDO DIA

Logo de manhã cedo, comecei a segunda parte da montagem do meu abrigo. Fiz um pequeno buraco quadrado com cerca de 40 cm de profundidade por 30 cm de largura. Fui até o riacho, e comecei a juntar argila (outra vantagem de se ficar perto de riachos). Revesti esse pequeno buraco com a argila úmida, e joguei um pouco de álcool, iniciei um fogo que alimentei com ramos e galhos secos por cerca de 40 minutos. Terminado isso, o resultado: A argila do revestimento se tornou tijolo. Ficou rígida e resistente à calor.

Depois dessa bem sucedida experiência, voltei ao buraco maior que havia cavado no dia anterior. Cortei um tronco pesado e comecei a bater o solo, para compactar e evitar que a umidade suba, isso é um trabalho muito, mas muito exaustivo. Após isso, parei para comer e descansar.

Retomadas minhas energias, comecei a buscar argila no riacho e espalha-la no chão batido e nas paredes do buraco. Até se tornar um revestimento úmido. Feito isso, sim, toquei fogo em tudo por uma tarde inteira. Terminada essa tarefa, eu tinha um ambiente impermeabilizado e isolado termicamente. Mudei minha barraca para lá, e comi a terceira e última refeição que havia levado.

TERCEIRO DIA

Na manhã seguinte, o trabalho era mais leve. Juntar galhos fortes e de tamanho médio para improvisar um teto para o meu abrigo. Isso não levou mais que uma hora, amarrei-os uns aos outros com um sisal, e estava pronta minha moradia fixa. Depois ainda joguei folhagens por cima, para evitar goteiras, e aumentar a vida útil da minha barraca.

Confesso que aquela tarde eu fiquei à toa, lendo Hemingway, e de noite, comi uns doces que estavam perdidos na mochila.

QUARTO DIA

Acordei disposto e faminto, coloquei minha roupa de caça, improvisei um arco e umas flechas, juntei uns 10m de sisal e levei minha faca. Comecei a procurar pegadas perto do riacho, onde o solo é mais macio e fácil de identificar pegadas. Fiquei cerca de duas horas atrás de vestígios, quando, enfim, encontrei alguns galhos quebrados na altura do meu joelho. Pela forma que estavam, pareciam pequenas mordidas, o que poderia ser uma cotia adulta, ou um javaporco jovem. Com muita cautela fui seguindo aqueles rastros por mais 20 ou 30 minutos, até que achei. Era um realmente um javaporco, sadio e bem desatento.

Matar um animal não é simplesmente mirar e atirar nele, uma flechada não mata nem um pombo, e dependendo do ponto em que você acerta, ele vai correr muito e você vai perder a presa, além do sangue dele atrair outros predadores, como pumas e jaguatiricas. A mira deve ser sempre em um lugar que dificulte a fuga dele e não sangre muito para que você possa se aproximar e mata-lo com segurança.

Respirei fundo, e posicionei o arco, o único som era o dos pássaros acima de nós. Comecei a mirar na coxa traseira dele, ele estava cheirando o solo, talvez procurando sementes ou algo assim. 

Atirei!

O animal começou a correr e fazer muito barulho, os pássaros que estavam calmos saíram voando de uma vez, denunciando minha posição; por sorte eu o alcancei facilmente, tirei o sisal e coloquei em torno do seu pescoço, como uma distração, então o derrubei puxando a flecha na coxa traseira. O truque para conter o animal é posicionar o joelho em cima do tórax dele, como em uma luta de vale-tudo. Ele estava preocupado com o sisal, então pressionei com o dedão embaixo da sua orelha, deixando-o imóvel, pela dor. E passei a faca em sua jugular. 

Para não deixar rastros para outros animais, lavei e fiz a sangria e a limpeza das vísceras do animal no riacho, selecionei os dois pernis e depois levei para o acampamento.

O preparo da carne de caça é simples, depois da sangria, você separa as partes que quer comer. No máximo duas partes, uma para a refeição que você programou, e outra para salgar e armazenar para uma próxima. O sal é ótimo conservante, mas como estamos em um clima subtropical, ele aguenta cerca de dois dias só.

Fiz minha primeira carne na churrasqueira, improvisei alguns espetos, salguei e comi pernil assado. O outro eu também salguei, e o amarrei no alto de um galho, longe de possíveis animais.

Jantei muito bem, me senti um viking, ou um daqueles celtas, como o Astérix. Como é bom viver sem aquelas pressões sociais inúteis.

QUINTO DIA

Logo de manhã comi o resto do assado do dia seguinte, a churrasqueira tinha permanecido quente, e conservou a carne contra moscas e outros insetos. Como não tinha muito o que fazer, li e comi lascas de pernil, que estavam levemente defumados até umas três da tarde. Então comecei a procurar um lugar para fazer um cemitério de caças. Por preguiça, joguei perto do riacho mesmo.

Aproveitei para explorar a região, como era um vale, haviam vários morros e cavernas de difícil acesso para turistas e curiosos menos dispostos a entrar na mata fechada. Me sentia o dono da floresta.

Explorei cerca de 5 km em torno do acampamento, e voltei para mais filar mais um assado.

Como aquele estava curtido no sal grosso, seu sabor estava ainda melhor. Mas, por conta do sal, acabei comendo menos do que gostaria, e deixei ele defumando a noite toda.

SEXTO DIA

Acordei sentindo cheiro de bacon, e me animei lembrando do que me esperava. Como no dia anterior, abri meu livro, e fiquei lendo e comendo lascas de bacon de javaporco por uma grande parte do dia.

Na parte da tarde, voltei a explorar mais o local, mas desta vez, visando locais para possíveis armadilhas para caça. Encontrei cerca de 12 pontos estratégicos para armadilhas e as preparei. Eram armadilhas simples, um buraco com paus com pontas virados para cima, e tampados com folhas. O objetivo da armadilha é que o animal sangre e deixe um rastro, para que eu possa caça-lo depois.

Cheguei tarde, já havia escurecido. Voltei a comer o que sobrou da carne, e fui dormir.

SÉTIMO DIA 

Levantei empolgado para caçar. Ainda não estava com fome, tinha comido muita carne nos dias anteriores. Mas hoje o método de caça seria diferente. Eu iria investigar as armadilhas e seguir os possíveis rastros. Então, obviamente, a caça seria mais demorada. Me aprontei com meus equipamentos, e fui.

Fiquei um pouco decepcionado nos 4 primeiros pontos de armadilha, estavam intocados. Mas no quinto, apesar da armadilha não ter sido descoberta, vi algumas pegadas de algo que parecia ser uma cutia. Cutias são fáceis de matar e de se carregar, o problema de se caçar cutias, é que elas são roedoras. Roedores tem uma tendência a se esconder em buracos e cavernas, e persegui-las pode ser um tanto perigoso, caso você queira entrar em uma das tocas ou cavernas que elas se escondem.

Segui um rastro até uma toca próxima de uma cachoeira. O ponto de caça era ótimo, o barulho da água ajudava a ocultar tanto meus sons quanto possíveis cheiros. Até que, minha concentração é interrompida por vozes não muito discretas.

-PÔ, NÃO ENTENDO POR QUÊ TRAZER ESSAS GURIA PRA ESSE FIM DE MUNDO!

-É PRA SAIR DO RASTRO DOS HOMI, VOCÊ NÃO VÊ AS NOTA FISCAL DOS PEDÁGIO?? TUDO COM FOTO DELAS.

Os dois homens estavam de bermuda e chinelo, sem a menor preocupação de se camuflarem, e um deles levava uma criança amarrada e, provavelmente sedada, nos ombros.

Eu estava praticamente invisível aos olhos deles, então fiquei observando.

– AQUI NÓIS ARMAZENA PRO DOTÔ USÁ DEPOIS

Eles falavam sem a menor preocupação de serem vistos ou ouvidos. Então comecei a segui-los, de longe. Eles subiram o morro e foram até uma pequena gruta, mal tampada por uma porta de bambu. Havia um rapaz sentado em frente a porta, ele usava um chapéu de pesca e fumava um cigarro de maconha. Mas deixava um rifle descansando ao lado da cadeira em que estava.

Os dois homens entraram com a criança pela gruta, e ficaram lá dentro por cerca de 20 minutos. Quando saíram, decidi segui-los para saber qual a rota que eles usaram para chegar até lá, e se, havia alguma chance deles acharem meu acampamento.

Eles seguiram uma trilha bem demarcada e quase em linha reta por cerca de 4 horas em direção a Rodovia. Assim que chegaram na rodovia, havia uma viatura policial parada próxima do fim da trilha. Eles entraram na viatura e seguiram.

Caminhei de volta ao meu acampamento, dessa vez, tomando o cuidado de apagar os sinais de pista que poderiam leva-los até lá. Fiquei realmente intrigado com aquilo, e não esperava que outras pessoas usassem a floresta desse vale.

Naquela noite, como havia deixado de rastrear minhas outras armadilhas, comi algumas frutas que encontrei pelo caminho, e fui dormir.

OITAVO DIA

Levantei junto com o sol, peguei meu arco e fui logo tentar achar algo para comer. Naquela região há muitos bananais, então desci até um deles e separei uma penca de bananas, comi umas sete e subi para caçar.

Quando eu estava saindo do bananal, vi a mesma viatura de ontem se aproximando da mata. Me esgueirei entre as bananeiras e fiquei olhando. Desceram outros dois homens, dessa vez fardados, abriram o porta-malas e de lá saíram outros dois, os mesmos de ontem, e mais uma criança, um menino com cara de assustado. 

Eles falaram alguma coisa com o menino e o obrigaram a tomar alguma coisa. Em poucos minutos o menino estava caído, e aqueles dois homens começaram a carrega-lo mata adentro. 

Seguiram a mesma trilha, mas como estavam com o menino, demoraram umas 6 horas, chegando lá com o sol a pino.

O rapaz da porta, que ontem estava fumando maconha, estava com óculos escuros, e comendo uma caixa de bombons. Aquela caixa revirou meu estômago faminto, então deixei-os para lá, e continuei minha caçada.

Consegui caçar uma pequena paca perto do riacho onde eu estava acampado. Confesso que a carne de paca foi uma das mais saborosas que provei na vida. Salguei e armazenei outro pedaço para o dia seguinte. Li um pouco mais até escurecer, e me arrumei para dormir.

NONO DIA

Levantei descansado e com preguiça. Confesso que estava um pouco entediado. Coloquei minha carne para assar, e comi algumas bananas.

Quando ouvi um barulho próximo do acampamento. Imediatamente me armei e fui ver o que era, com muita cautela. Fui caminhando com cuidado para não quebrar galhos no chão e denunciar minha posição. Outro cuidado, foi não balançar galhos menores próximos a região do rosto. Isso atrai a atenção do observado para o observador. Constatei que eram aqueles homens, que estavam enchendo seus cantis com água do riacho.

Pensei comigo.

“Eles devem conhecer o local muito melhor que eu, parece que fazem isso todos os dias. Se me descobrirem e me surpreenderem isso pode se tornar perigoso. Como há policiais envolvidos, provavelmente eles têm acesso a armas de fogo, mas se acontecer algum acidente com eles, dificilmente alguém daria falta ou investigaria formalmente.”

Então decidi investigar o que estava acontecendo. Pelo que eu havia percebido, eles trazem uma criança por dia, todos os dias ao nascer do sol, levam cerca de 6 horas para subir e 4 a 5 para voltar. Uma viatura os leva e busca, e só há um guarda naquela gruta.

Se eu apagar o guarda e entrar, eles só descobrirão no dia seguinte, o que me daria um dia de vantagem de fuga mata adentro. Naquele dia fiquei planejando detalhes da minha nova investigação, e comendo paca assada.

DÉCIMO DIA

Levantei bem antes do nascer do sol, cerca de quatro da manhã. É um horário estratégico. Para vigilantes, o horário próximo da troca de turno é o mais vulnerável, e como ele não trocava de turno, era quase que obvio que ele dormia horas antes do horário que teria gente lá. E subi até a entrada da gruta, e bingo! O rapaz de guarda estava dormindo, dormindo pesado.

Eu estava com roupa de caça, um poncho feito de folhas, era praticamente impossível de me notar, mesmo com uma lanterna. Me aproximei do rapaz, e, sem tirar o fuzil dele do lugar, destravei o carregador, retirei as munições e as guardei comigo. Recoloquei o carregador vazio na arma e me escondi em alguns arbustos, mas bem próximo à porta.

O relógio dele começou a apitar perto das 11:30, horário em que os outros dois estavam chegando com mais uma criança. O rapaz fingiu estar bem acordado e cumprimentou os dois. Depois que eles saíram, o rapaz acendeu um cigarro de maconha e fumou inteiro, e logo caiu no sono de novo.

Percebendo que ele estava dormindo, e estava desarmado, caminhei com cuidado até a porta da gruta, e entrei.

Era um corredor quente, escuro e úmido, com algumas luzes incandescentes mantidas por um gerador a combustível do lado da porta. Segui o corredor, até chegar em um espaço com uma jaula, com cerca de 30 ou 40 crianças presas lá. Já havia lido na internet teorias sobre crianças desaparecidas, sempre achei que eram falsas, mas aquelas crianças eram muito reais. Procurei alguma saída alternativa daquela gruta, e encontrei um pequeno e pedregoso túnel. Entrei nele para ver aonde dava.

Tinha a impressão de que aquilo não teria fim.

Saí do outro lado do morro, cerca de 15 km da entrada da gruta, e uns 20 km do meu acampamento. Já eram cerca de quatro da tarde, teria que retornar no escuro. Aproveitei para ir percebendo outras fontes de água e trilhas de animais menores.

Cheguei no acampamento por volta das 22 horas. Troquei de roupa e fui dormir. O dia seguinte, seria de caça.

DÉCIMO PRIMEIRO DIA

Acordei no meio da noite, eram 3 da manhã, fui até o meio da trilha que os homens faziam todos os dias. E comecei a cavar.

Existe uma armadilha muito comum, chamada buraco apache, que consiste basicamente em um buraco com cerca de 1 metro de profundidade, com paus estancados verticalmente e galhos com espinhos no fundo. É demorada de cavar, mas fácil de montar e camuflar. Demorei cerca de uma hora e meia para monta-la; e segui um pouco mais à frente para a próxima armadilha.

Essa era mais rápida, e mais eficiente, chamada de punji, é usada para caçar animais grandes. Você cava um buraco pequeno, que caiba um pé e que a profundidade seja próxima da canela, corta alguns galhos de uma planta com espinhos (a que eu achei foi a sansão do campo, muito comum nessa região, e tem espinhos de cerca de 7cm) e os coloca com um contrapeso na ponta próxima da borda do buraco. O que acontece, quando o animal pisa, os galhos se fecham na perna, e dificultam sua locomoção.

Perto das 6 da manhã estavam prontas, e eu os esperava.

Acontece que nesse dia, eles chegaram na gruta cerca de três da tarde, estavam subindo cerca de 4 pessoas, e sem nenhuma criança. Estavam os dois homens de sempre, um policial, e um homem baixinho, e muito bem arrumado para estar no meio do mato. E por isso, eles tomaram a trilha ao lado da que eu fiz as armadilhas. Aquilo frustrou meus planos, mas continuei os seguindo e ouvindo o que diziam.

O homem baixo, era chamado pelo outros de “dotô” e parecia ser quem mandava naquilo.

-Intão seu dotô, quanto de cada um dos guri que nóis leva de porcentagi?

-Vocês levarão o suficiente, fiquem tranquilos.

Disse o homem, calmamente.

Chegando na porta da gruta, todos entraram, e ficaram lá por cerca de duas horas. Quando estavam saindo, ouvi o tal Doutor conversando com o policial.

-Então coronel, eu demoro cerca de 5 dias para transformar essas crianças em bonecas, sabe como é, né… Tem que remover os dentes, os braços e pernas, pra não causar nenhum desconforto aos compradores. Feito isso a diversão está pronta. São as melhores bonecas do país.

-Mas você vai ter que acelerar, tenho que leva-las pra capital, e os compradores estão impacientes. E o aumento do preço que você sugeriu, não soou muito popular.

Mas por acaso, eles desceram pela trilha das armadilhas. E o primeiro a cair foi o coronel, que caiu no punji.

-AARGH O QUE É ISSO?! O QUE É ISSO?!

Ele não conseguia tirar a perna. Quando o tal do Doutor viu aquilo, se apressou em correr e caiu no buraco apache. E por lá ficou, sem se levantar, gritando de dor.

Os outros dois sacaram dois revolveres .38, e começaram a olhar para os lados, assustados. E o rapaz da vigia, desceu correndo com o fuzil, para saber o que estava acontecendo.

-ALGUÉM VIU NÓIS, O BICHO PEGOU, NÓIS TEM QUE DÁ FIM NISSO!! NÓIS FOMO DISCUBERTO!!!!

Aproveitando esse momento, mirei com o arco na testa do coronel, que estava conseguindo se soltar. E com um só disparo, o matei.

Nesse momento os outros três pararam. Era nítido o medo deles. Não era mais o medo de alguém da polícia, ou de algum órgão do governo para prende-los. Ficou nítido que a intenção daquele momento era mata-los.

Então, para eles, eu não era mais um homem, ou um grupo. Eu havia me tornado um espectro, uma força quase sobrenatural. O medo que tomava conta deles não era o medo de um conflito, era o medo do desconhecido.

Eu estava deitado contra um tronco caído a cerca de 10 metros deles, o dia estava escurecendo, e os três estavam em círculo, apontando as armas para todos os lados. Armei calmamente o arco com mais uma flecha. Mirei no joelho do rapaz com o fuzil e disparei. A flecha não atravessou a perna dele, e ficou travada em seu joelho.

Com o urro de dor dele, os outros dois se assustaram e se esconderam atrás de duas arvores.

Haviam percebido a direção do tiro.

O rapaz com o fuzil estava de joelhos e gritava de dor, começou a se arrastar em direção a porta da gruta. Mirei na arvore ao lado de onde um dos homens estavam escondidos. Quando a flecha tocou o tronco, ele, tremendo, colocou a arma na direção do tiro e descarregou a arma sem direção.

Era o que eu esperava.

Eu tinha duas flechas e uma faca, e eles provavelmente tinham só seis tiros.

Disparei contra a arvore ao lado do outro rapaz, esperando a mesma reação, mas ele saiu correndo quando viu o tiro.

Isso era um problema, por que ou eu revelava minha posição e ia atrás dele, podendo ser surpreendido pelo outro, ou focava no outro e esse fugia, podendo trazer mais reforços.

Decidi focar no que estava sem munição. Mas então, vi que o outro correu para outra arvore, mais distante de onde eu estava. O que aumentou meu problema, o arco tem um alcance total de cerca de 30 metros, mas o alcance útil dele, é de uns 10, que é o limite em que eu estava.

Esperei, imóvel, os dois tomarem alguma decisão, por cerca de uma hora.

Então anoiteceu. Eu dei mais um disparo, meu último. Na arvore ao lado do rapaz desmuniciado. E ele saiu correndo em direção a gruta. Agora eu estava em um impasse. Estava caçando os dois, que estavam em direções opostas, mas ao mesmo tempo, eu poderia ser surpreendido.

Mas, começou a chover.

Resolvi mudar de tática, deixei o arco de lado e fui em direção ao rapaz armado e com munição.

——

Lá de cima, o vigia ferido e o outro homem tentavam enxergar o que estava acontecendo. A chuva estava forte e dificultava tanto a visão quanto a locomoção de todos.

Quando se ouvem três tiros seguidos, uma pausa, outros três tiros. Eles ficam animados, afinal, a chance do amigo ter sobrevivido era grande. O vigia se arruma na cadeira, encorajado, destrava o fuzil e diz:

-Vai lá, que eu te dou cobertura por aqui.

O outro homem começa a descer a trilha já com lama e escorregadia, e chega até onde seu amigo havia se escondido.

Ele estava morto, degolado e com a própria arma enfiada na boca, com sua nuca destruída pelos tiros.

O homem sente um frio percorrendo sua espinha, a sensação de não saber com o que está lidando faz com que ele entre em desespero, e sobe de volta, aos tropeços, gritando:

-ELE MORREU, FICA DE OLHO!!! ATIRA!!

Assim que chega de volta na porta da gruta, vê o vigia também degolado. O homem começa a chorar, não entende o que está matando as pessoas e o porquê daquilo, então, muito trêmulo, ele pega o fuzil do vigia e entra na gruta, assustado. Liga o gerador e continua andando de costas, em direção a sala das crianças.

Ele então vê um vulto na porta da gruta, e tenta disparar

“click” “click”

Ele olha para o fuzil, que estava descarregado, joga-o no chão, chorando, então o gerador se desliga e tudo fica apagado.

——

O homem respira alto, ofegante, não era preciso mirar para acerta-lo nem se eu fosse cego. Para piorar a situação dele, ele acende um isqueiro, denunciando mais ainda sua posição.

Vou esgueirando a parede, agachado, para evitar sombras, e, quando fico a uns 5 metros de distância dele, arremesso uma pedrinha do lado dele.

Ele olha desesperado para trás e grita:

-O QUE É VOCÊ?! ONDE VOCÊ ESTÁ?!

E calma e suavemente, eu sussurro no ouvido dele:

-Aqui…

Depois de todos eles mortos, esperei a manhã seguinte e levei todos os corpos para dentro da gruta, junto com as crianças. Então tampei a porta da gruta com pedras, e, com a argila do riacho isolei os pontos.

Fiz uma fogueira na frente da gruta, para secar e transformar a argila em tijolo, fechando completamente a entrada. Então, revesti com argila úmida de novo, e a deixei lá.

A argila úmida é ótima para se desenvolver limo, e, em cerca de algumas semanas, ela estava repleta de limo, e a entrada da gruta escondida para sempre.

Conto escrito por Lucas Eduardo.

16 Comentários

  • Já é a terceira vez que eu leio esse conto, e todas elas eu percebo detalhes que deixam ele mais macabro. É sensacional!!! Mandem mais que vai ser bem vindo

  • Lucas, já tinha achado interessante o texto “um conto sobrevivencialista” pois mostrou uma visão do sobrevivencialismo urbano de uma maneira criativa. Confesso que, em princípio, achava apenas uma fábula “conto” qualquer. Mas depois de ler outro texto “a gruta” (este acima), fiquei impressionado da forma de como você insere o universo sobrevivencialista em um texto narrativo.
    Continue com esses excelentes textos que em breve alguma editora poderá se interessar.
    Abraços!

  • sensacional!! só fiquei sem saber se quem era pior era o narrador ou quem ele matou kkkk continuem assim, foi foda

  • Pelo que entendi ele não fechou as crianças, só os corpos dos bandidos. Muito bom conto!!!! Só achei que ele matou os pedófilos proxenetas muito rapido. Deveria ter torturado eles.

  • Adriano de Carvalho Campos

    Adorei o texto! Mas e as crianças? Porquê deixou-as na gruta?

  • Daria até um filme!

  • Acho que minha interpretação está falhando,no fim da história as crianças estão salvas?

    • Sobrevivencialista

      Foi isso que fiquei pensando. Pelo que entendi, fechou as crianças com os corpos lá dentro. A gente acha que iria ficar tudo bem no final, mas fica mais macabro ainda!

      Por que ele fecharia as crianças junto? Para não ter o trabalho de devolvê-las, chamar a polícia, ser testemunha e prestar depoimentos?

      • Lucas Eduardo

        Olá sobrevivencialista e Eduardo, tudo bem?
        Que bom que gostaram do texto, fico muito feliz que tenha gerado discussões.
        Mas é isso mesmo, ele fecha elas junto. A narrativa nos coloca na perspectiva de um sociopata, mas só percebemos isso depois. Se repararem bem, em nenhum momento ele dá a mínima para as crianças, ele só mata os caras por que eles chegaram perto de descobrir onde ele estava acampado. Valeu e boa leitura!!

  • Muito bom, cada texto mais tenso que o outro.

  • Mais,mais…

  • julio, eu estou procurando uma carabina que não mata o animal, só o espante, qual seria?

  • Sobrevivencialista

    POR QUE ELE FECHOU AS CRIANÇAAAAAS?

  • Que história sensacional. Continuem assim. parabéns.

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