Uma quase situação de sobrevivência

Durante 11 anos eu vivi no México, mais especificamente na Cidade do México, onde nasceram minhas duas filhas. Eu sempre curti natureza, caminhadas e quando dava praticava uma ou outra técnica de sobrevivência, como fazer fogo ou construir algum abrigo improvisado, nada muito complicado até porque esse tema sempre foi mais um hobby que qualquer outra coisa. 

Mas por conta da epidemia de H1N1 em 2009, onde o epicentro foi nesse país, eu comecei a levar esse assunto da sobrevivência mais a sério, e comecei a estudar também algumas técnicas sobrevivencialistas, como estoque de alimentos, obtenção de água, etc. Isso porque durante a epidemia minha esposa estava grávida e para evitar qualquer risco de contágio passamos um mês sem sair de casa. Na época não estávamos nada preparados e por sorte os serviços básicos não colapsaram, então podíamos comprar suprimentos nos supermercados pela internet e pedir entrega à domicilio.

E como uma coisa leva a outra, montei uma Bug Out Bag comecei a procurar por “Bug Out Locations” para o caso de uma evacuação (tipo terremoto devastador). E foi nessa busca por por uma BOL que meu gosto pela natureza, caminhadas e acampamentos voltou e comecei a fazer trekking pelos diversos parques naturais em volta da Cidade do México, como o Desierto de Los Leones, El Ajusco, El Nevado de Toluca (um pouco mais distante) e La Marquesa. Esse último se tornou meu lugar preferido.

Distando uns 50 KM da Cidade do México eu frequentava os bosques da La Marquesa um sábado sim e outro não, alternando com o clube de tiro, era o local ideal para praticar técnicas de sobrevivencia por ser uma área com muitos bosques, alguns riachos, não muito longe da cidade e apesar de ser muito frequentado, oferecia áreas de bosques de coníferas isoladas e muito pouco frequentadas. Era um lugar que eu explorei de cabo a rabo e acabei por conhecer bem, chegando a levar a familia de piquenique lá em alguns finais de semana.

Passam-se os anos, minhas filhas já com 6 e 4 anos respectivamente e minha esposa parte numa viagem de trabalho a Buenos Aires e eu fico sozinho com as duas durante o fim de semana. Resolvi então leva-las a Marquesa para passarmos o sábado assando marshmellow na fogueira no meio do mato, coisa que as duas adoravam e adoram até hoje. Isso foi em junho de 2015.

Vale ressaltar que o período que vai de final de maio a final de outubro é a temporada de furacões no Golfo do México e a pesar da Cidade do México estar a uns 300 km da costa, chove todos os días na parte da tarde na regiao. Chove tipo tempestade, com raios, trovões e um tremendo aguaceiro. E como a cidade se encontra a 2.400 metros acima do nível do mar, a temperatura cai drásticamente.

Sabendo disso, saímos de casa relativamente cedo para evitar o aguaceiro que normalmente ocorria por volta das 3 horas da tarde.

Chegando na Marquesa, estacionei o carro na entrada do bosque e caminhamos cerca de 1 KM até uma clareira com um riacho que era o local onde normalmente fazíamos os piqueniques em família. Chegando lá o lugar já estava ocupado por um grupo de Argentinos praticantes da arqueria medieval (eles organizam um festival medieval uma vez por ano na Marquesa que é bem legal). Como achei perigoso ter as duas meninas correndo por ali perto dos caras disparando com arcos e flechas e por conhecer bem a região e o céu estar claro, decidi ir com as duas para um outro local que eu usava para praticar técnicas de sobrevivência quando ia sozinho, mais ou menos 1,5 KM bosque adentro e morro acima. E, felizes e confiantes. Fomos caminhando, as meninas fazendo uma tremenda algazarra como sempre, até que saímos da trilha, caminhamos mais uns 15 minutos e chegamos ao lugar, que era bem isolado.

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Visual do nosso acampamento

Chegando, deixei minha mochila numa árvore caída e comecei a juntar o material para começar a fogueira. Só que acender o fogo foi uma tarefa impossível, pois a madeira toda estava completamente encharcada. Como o bosque era de Cedro, não havia galhos perto do chão que eu pudesse cortar e os galhos caídos estavam mesmo muito molhados. Acabei usando uma espiriteira da Trangia para as meninas assarem seus Marshmellows. Vimos umas vacas no meio do mato o que encantou as duas e tudo corria bem até que lá pela uma da tarde o céu começou a ficar escuro e de repente parecia noite.

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Foto das vacas que vimos

Rapidamente recolhemos todo o material e guardamos nas mochilas e quando começamos a caminhar em direção a trilha escutamos a primeira trovoada, que no meio daquele bosque de coníferas a 3.200 metros de altura, mais parecia uma explosão. As meninas se assustaram e eu tentava acalma-las enquanto caminhávamos já mais apressados, com as trovoadas se sucedendo uma após a outra. Eram tao fortes que davam a sensação de que todo o bosque tremia. Inclusive eu já estava estressado pois ser pego ali naquele lugar por uma tempestade com duas crianças não seria nada agradável.

Chegamos na trilha já debaixo de chuva e no que eu dei o primeiro passo, escorreguei…. Uma escorregada daquelas, em que os dois pés ficam no ar, aterrizando meus 95 kg sobre minha mão e braço direito. A dor foi lancinante!!! E soltei um grito que deve ter sido estarrecedor porque ao mesmo tempo minhas duas filhas começaram a chorar, a menor de forma histérica.

O choro dela foi o que me fez voltar a realidade, pois a dor foi tão intensa que me levou direto a lua. Respirei fundo e ao tentar me levantar vi que meu braço direito estava praticamente inutilizado. Na hora eu não sabia, mas o impacto fez com que eu rompesse os ligamentos do ombro, o que limitou sobremaneira os movimentos do meu braço.

Quando consegui me levantar toda a seriedade da situação em que nos encontrávamos me caiu em cima. Estava sozinho com duas crianças pequenas, numa trilha não frequentada, no meio de uma tempestade, num bosque de coníferas a 3.200 metros de altitude, a pelo menos uns 3 km do meu carro ou de qualquer ajuda possível, com meu braço direito, sou destro, praticamente inútil, sem sinal de celular e a única pessoa que conhecia nosso plano e paradeiro era minha esposa que estava a 12.000 km de distancia em Buenos Aires. Preocupante!

Comecei a pensar no pior que poderia acontecer, que seria não conseguirmos chegar até o carro e as meninas sofrerem um hipotermia. Apesar de estar com todo meu equipamento de sobrevivência, que é baseado na regra de três (3 minutos sem ar, 3 horas sem abrigo, 3 dias sem água, 3 semanas sem comida, 3 meses sem resgate), mas burramente sem o meu SPOT Gen 2, que e uso usava para caminhadas mais longas ou por trilhas que eu ainda não conhecia a hipótese de montar um abrigo com poncho e esperar passar a tempestade foi descartada, já que eu não sabia o que havia acontecido com meu braço.

Com isso, só nos restava tentar chegar de volta ao carro, já que a hipotermia era o grande risco e segundo havia lido era o maior fator de morte entre pessoas perdidas. Me preocupei pelas crianças. Então a saída era caminhar, ainda que lentamente, mas sem parar para evitar que o corpo esfriasse. E assim fomos, lentamente. Minha filha caçula continuava chorando, mas a mais velha já tinha se acalmado. E tudo isso debaixo de um aguaceiro daqueles.

Até que finalmente chegamos no carro, totalmente ensopados mas muito aliviados todos os três. No caminho cheguei a tentar usar um poncho do exército para cobrir-nos aos três, mas minha filha mais nova estava tão assustada que se recusou. Ela só se acalmou quando chegamos no carro, onde depois delas haverem removido todas as roupas molhadas, eu as enrolei cada uma em um cobertor de alumínio e voltei dirigindo, todo ensopado e com uma única mão (por sorte meu carro tinha cambio automático), até que chegamos em casa sãos e salvos.

Para finalizar, no dia seguinte fiz uma tomografia do ombro, que estava todo arrebentado, mas como o tendão não se havia rompido por inteiro (sobrou cerca de 1 cm), o médico conseguiu recuperar com fisioterapia.

Esse ocorrido me fez pensar que se em lugar do ombro, houvesse sido a minha perna, nós três teríamos ficado em muitos maus lençóis. Talvez eu conseguisse improvisar um abrigo com o poncho e os cobertores de alumínio mas ainda assim seria uma situação de altíssimo risco, por isso que, desde esse incidente, sempre levo meu SPOT comigo, até para as caminhadas mais banais. Também passei a treinar técnicas de sobrevivência usando apenas uma das mãos e a nunca me meter no mato com as meninas sem que minha esposa esteja na cidade.

Texto escrito pelo sobrevivencialista Carlos Menezes. 

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5 Comentários

  • O Júlio poderia voltar com o quadro histórias de sobrevivência no Canal

  • Achei o relato Ótimo, pois me chamou atenção principalmente a começar a treinar técnicas com a mão que não utilizo, como sou destro no caso a mão esquerda, todos os outros fatores estamos carecas de saber mas essa das mãos poucas vezes pensamos ou colocamos em pratica na minha opinião.

  • Que irresponsabilidade! Sair da trilha com duas crianças, sem avisar amigos próximos e sem conferir a previsão do tempo!
    Pôs as pequenas em risco!

  • hudson ramos

    pô, que apuros cara

  • João Pedro Rusisca De Toledo

    Caramba, que história. Eu já estive em situações um pouco parecidas, porém na seca extrema do cerrado e sozinho (o que é muito mais tranquilizante).

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