Um relato de quem nasceu Sobrevivencialista

Achei por bem relatar a historia incrível de uma menina que, nunca lhe passou pela cabeça ser sobrevivencialista desde que nasceu. Nascida em Portugal, oriunda de uma família judaica pobre, vivia num morro muito idêntico a uma favela.

As condições eram deploráveis como devem imaginar. Faltava água da companhia, roubava eletricidade dos postes, partilhava seu barraco com baratas, aranhas, ratos, todo tipo de animais que possam imaginar. A noite, a iluminação era feita com lamparinas de azeite e velas.

Desde garota teve que se virar sozinha de qualquer jeito. Na escola, levava surra de outros meninos por ela ser “diferente”, aprendeu com seu tio Krav Maga e dava surra também, e sarilhos… Tinha uma mãe muito doente, portanto não podia contar com ela para as simples tarefas diárias, como o banho, comer, vestir, e por ai vai.

Como era uma menina judia, não a deixavam comer na escola. Ela teve que se virar fazendo fogueira e fazendo comida sozinha em casa. Aprendeu a jejuar demasiado cedo também, diz ela, que enrijece o corpo, a mente e a alma. Pegava num alguidar e ia buscar água as lavandeiras ou a fonte para se lavar, cosia as roupas rasgadas para se manter quente. Arrumou gato para caçar ratos e outros animais que não a deixavam dormir.

Com o passar dos anos ficou mais esperta e começou a usar em seu proveito os outros meninos que se achavam os maiores, mas para ela, não passavam de uns idiotas. Começou a ser criativa, fazendo cabula para copiar nos exames e vendia as tais cabulas por 20 escudos. As mais elaboradas, cobrava 50 escudos! Com isso, juntou dinheiro que para matar a fome ou ajudar sua mãe.

Mal sabia ler e escrever mas já ia a mercearia sozinha para fazer compras, já trepava nas árvores para apanhar limão, maçã, laranjas, castanhas, bolota, o que desse para comer.

Lavava roupa nas lavandeiras na beira do rio.

“Perder esta vergonha toda e fazer isto tudo foi algo muito difícil de superar” relatou ela, pois era tímida e bastante envergonhada por estar entre pessoas que não conhecia. Sem duvida que a barreira psicológica foi uma das que mais batalhou para conseguir seguir em frente na sua vida.

E venceu-a.

Mais tarde na sua vida, ingressou a Cruz Vermelha, visto não ter conseguido entrar para o exército, para tristeza de sua mãe. MAS…Foi aqui que tudo começou a fazer sentido para ela!

 Aprendeu muita coisa por lá, desde equipamentos, técnicas, acampamentos, simulacros, condicionamento físico, provas que a levou até ao limite do frio, da fome, do medo… Aprendeu primeiros socorros e foi paramédica, sapadora florestal e fez parte da equipa de busca e salvamento em caso de sismo. A sua especialidade foi telecomunicações.

 Foi uma experiência deveras gratificante, mesmo os maus bocados que passou e até hoje continua a ter um grande respeito pela instituição e está grata por tudo, mas até a Cruz Vermelha tinha suas limitações e ela queria mais…

Como todos nós em um certo ponto da vida, acabamos a graduação, arranjamos emprego, casa, namorado/a…E por aí vai. Ela também passou por essa fase de sua vida, e parecia tudo bem, só não imaginava que o pior ainda estava para vir!

Sua mãe adoeceu repentinamente com um AVC cerebral que posteriormente levou a sua morte. Foi um golpe demasiado duro para ela aguentar, o mundo tinha acabado de desabar em cima dela! Apercebeu-se então que poderia ser a próxima vitima de um mal de saúde que sua família sofre algumas gerações, e infelizmente, anos mais tarde veio-se a confirmar.

Quando sua mãe morreu no hospital armou uma zaragata de tal forma, tanta era a raiva dentro dela que foi presa com pena suspensa e teve de cumprir serviço comunitário, entre outras séries de coisas para limpar seu cadastro.

Seu pai, bombeiro, meteu-se na droga e álcool, chegou quase matando-a de porrada, mas se virou, graças a sua resiliência e algum Krav Maga e passou a viver nas ruas da cidade. Mas antes disso, conseguiu ainda metê-lo em um manicômio. Nunca mais foi visto.

Perdeu sua mãe, perdeu todo um pilar basal da família, perdeu seus pertences, sua casa, seu emprego, tudo! Só tinha a roupa do corpo, um gato, uma mochila com algumas coisas que na altura achou úteis para se virar nas ruas até arranjar maneira de ter uma vida decente.

Os dotes sobrevivencialistas, já nesta altura mais apurados, entrariam em ação novamente!

A garota viveu nas ruas durante um longo inverno com a ajuda de ex-colegas da cruz vermelha e amigos, ia conseguindo abrigo para dormir, ia buscar sopa aos serviços comunitários, usava banheiro público para se lavar, dormia na estação de comboio.

O lixo urbano acabou por ser útil – contou ela. Caixote de papelão era bom isolante térmico, saco de lixo fazia barraca satisfatória, jornal ajudava a manter a temperatura corporal. Ainda possui o seu Victorinox daqueles tempos.

Mas…. Sua vida iria dar outra volta.

Chegando de Israel outro voluntário da cruz vermelha, bastante ferido, quase perdendo sua perna devido a uma explosão de bomba perto da faixa de Gaza onde naquela altura se encontrava montado um pequeno acampamento da cruz vermelha, viria aquele que iria ser seu marido.

Conheceram-se, apaixonaram-se e mesmo as diferenças não lhes demoveu o coração(ele cristão, ela judia…). Juntos conseguiram ir em frente, conseguiram emprego, casa, uma vida mais decente.

Tiveram uma filha.

Apesar dela ter posto um ponto final na sua carreira devido a sua doença, não quer desistir e procura emprego noutras áreas que lhe seja possível ainda trabalhar. Mas, segundo ela diz, é muito difícil na realidade portuguesa. Está muito velha para trabalhar e muito nova para se reformar ou ter pensão. Acredita ser falta de sorte, que, segundo conta, num pais com ainda muito preconceito sobre certas coisas que aparentam ser tabu, preferem bater com a porta no nariz ao invés de alargarem horizontes.

Agora, mais espertos, mais calejados, preparam-se para qualquer eventualidade que possa surgir(e não para o apocalipse zumbi!). Contando que no futuro seu marido possa perder o emprego, a garota faz preparação para pelo menos meio ano, mesmo sendo difícil para caramba com o pouco dinheiro que possuem, mas comida e água tem que ter!

Ter kit de 72H e BOB não e nenhuma novidade para eles, também têm em consideração para a filha e para o pet de estimação, o gato.

Foram viver para a serra, e, com a serra, uma nova realidade fez ver as coisas com outros olhos. Sobreviver no mato é diferente de sobreviver na cidade. Apaixonada por atividades de outdoor pratica trekking e mountain bike sempre que pode, e, sempre que pode, desfruta do que a natureza lhe pode dar.

 Mas…

Portugal todos os anos é assolado por incêndios florestais e secas longas, e os governos, nada fazem! Só este ano relatou que 2 grandes incêndios consumiram sua serra, e um deles, a porta de casa! Ela só teve tempo de pegar sua BOB, sua filha e liberar o gato porque estava vendo o fogo ir ter com ela sem misericórdia!

Por um triz, segundo conta, os bombeiros lhe salvaram a casa. Desta maneira relatou a experiência, ainda muito viva em sua memória:

“mataram-se a trabalhar e fui ajudar alguns feridos muito ligeiros e dar apoio moral a outros que estavam exaustos, conheço vida de bombeiro muito bem, meu pai e meu avô foram bombeiros! Distribuí água engarrafada, limpei ferimentos, tratei entorses, dei barrinha de cereal e gel energético da minha BOB. orientava-os para um ribeiro que há no fundo de uma encosta onde a nascente fica a metros, a água é limpida, mas filtrávamos, pois nunca se sabe! Os rios em Portugal ainda são muito poluídos e a culpa e dos espanhóis! Levava castanha, bolota, limão,  maca, laranja, folhas de eucalipto para ajudar cicatrizar arranhões. Foi uma experiência interessante ter usado a minha BOB para ajudar outros que não eu própria! Vi uma perspectiva diferente, da qual me fez repensar a organização da minha BOB.

Porque a usei? Simplesmente não havia ambulância nem paramédicos para apoiar os bombeiros que combatiam o fogo, estão demasiado ocupados para andarem a tratarem de si mesmos! nem vi cruz vermelha fazer apoio logístico! Mas o que se passa? Isto esta TÃO errado! Ver aquela gente ao Deus dará sozinhos sem apoio, só podiam contar com a ajuda das aldeias. Mas….mesmo assim e muito mau!”

Visivelmente emocionada contou que Portugal tinha tido o segundo incêndio mais terrível de que há registo. Provocou demasiados mortos para ser verdade, e assim um relatório de entidades independentes assim o determinou: falha humana.

“só quero que esses comandantes e os políticos responsáveis sejam presos, demissão não chega!” –  Esbracejava, visivelmente constrangida e revoltada com certeza pela tragédia.

“Portugal passa por uma seca extrema, o que também dificulta o combate aos incêndios que se tornam muito violentos, a seca deixa aldeias inteiras sem água, a agricultura esta por um fio, animais morrem… Mas….Um fenômeno um bocado bizarro, é o furacão Ophelia que vai no sentido oposto ao que e costume, não chega a portugal, mas estamos esperançosos que traga alguma chuva. Pelo que já apurei devera ser daqui a 2 a 3 dias.”

Confessou que até gosta de ver os programas do Bear Grylls e de ver coisas relacionadas, mas tem a perfeita consciência que é simplesmente puro entretenimento com uma pontinha de utilidade lá no fundo. Contudo, presume que adquiriu esta consciência por ter vivido uma vida muito difícil e não se deixa ir na onda da fantasia. Mas para quem nunca passou mal, a fantasia da televisão e da Internet podem ser armadilhas perigosas….

Apocalipse zumbi? O dia do juízo final?  O verdadeiro Sobrevivencialismo é a luta diária para sobreviver e prosperar, seja durante catástrofe natural, humana ou apenas a vida que pregou uma enorme rasteira!

Pode ser uma catástrofe aqui ao lado, pode ser uma bem longínqua mas que pode interferir bastante e que pode chegar a escala planetária. Os registos geológicos evidenciam bem essa faceta de que, neste planeta, lidera no topo o mais forte e capaz de aguentar qualquer tranco, e os fracos são os que desaparecerão depressa da existência.

Depois deste relato de vida arrepiante, chega-se a conclusão que se deve ser mais esperto que os outros, criativo, forte, resiliente, manhoso, determinado, motivado.

Assim se faz um sobrevivencialista nato.

Estejam preparados.

Texto escrito por Fernanda Araújo.

8 Comentários

  • Um excelente relato pra chocar de realidade quem vive apenas atras de um teclado.

  • Welthon Tavares

    Pessoal vamos criar um grupo de whats pra os sobreviencialistas interagirem entre si, quem quiser põe o numero, se tiver muita gente crio o grupo!

    • Welthon Tavares

      Ideia cancelada

    • O Júlio já criou algo semelhante… vários grupos no facebook representando diversas regiões do Brasil, com o objetivo de formar grupos sobrevivencialistas… infelizmente, com algumas raras exceções não deu certo..

  • Uma heroína é o que ela é! Motivadora história!

  • Gabriel Alves

    Ótimo texto! Esse exemplo mostra o quanto a resiliência é importante em um sobrevivencialista. Muitos se preparam para desastres imensos, mas se esquecem das dificuldades simples da vida (como a morte de um parente). Também é preciso se preparar para perder. E se o incêndio acabasse com todo o estoque de alimentos na casa dela? Ela iria continuar se preparando. É realmente uma lição de vida.

  • Uau, que história em…
    Vemos aqui um belo exemplo do quanto a vida nos obriga a ter pelo menos o básico de um conhecido para sair de momentos de crise.

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